Uns minutos com Belvedere

Tenho sido feliz procurando crescer dentro do que me propus.

Textos

Marcas do tempo

Belvedere  Bruno

 Debruçada na janela,  observo  o   mundo que,  há tempos, se constitui  no cotidiano de uma  rua de periferia.  O cansaço chegou, somado   a dificuldades  no caminhar, e  a visão,  turva ,  me mostra apenas  uma  sucessão de dias  monótonos, vazios .  Muitas vezes, me   pergunto se vale a pena viver  sem motivações ,  alegrias, esperanças .  Nada existe    que   me  prenda a esse  mundo.   Olho os novelos de  lã, que sempre foram fontes  de alegria e prazer, e me  lembro das  colchas, coletes, vestidos e  blusas que, carinhosamente, tricotava  para  minha  família.   Era meu    passatempo  preferido, mas  agora,  com essa  insensibilidade nas pontas dos dedos ...  tento , mas em vão. As agulhas caem , as linhas se embaraçam . Desisti, também , das revistas, pois meus olhos vêem  nelas apenas borrões.  Que doença danada! Foi minando meu corpo e, agora, já não tenho sequer como andar, e rastejo.   De tão calada que passo meus dias, sequer consegui , na visita médica mensal, explicar  o que sinto de esquisito . As palavras ficaram travadas  e  o máximo que consegui  emitir pareceu  um grunhido . Foi quando me dei conta de que já estava excluída da vida. Lembrei, sorrindo, de uma matéria de  revista, que  falava   sobre  certas culturas; países  onde as  pessoas se preparavam para a morte, se deitando, ou sentando, até que Ela chegasse.  Eu  me sento   todos os dias, horas a fio,  esperando-a, e Ela  não vem.    As forças se extinguem.  Sei  que  a solidão é  algo  de que  não se  corre, principalmente quando as pernas  já não servem para nada, e a cabeça sempre  se esquece de  raciocinar.  Vario  demais. Chego a ver nos outros o rosto  do   meu pai, da minha mãe...  
Não gosto de contar sobre a dor que  marcou   minha  vida.   Foi por conta da minha única filha que, duas semanas após meu aniversário de oitenta anos, disse que não podia mais  ficar comigo e me trouxe  para esse asilo.   Não pensei que fosse um adeus, até que os anos  passaram. E assim , fiquei só.
Daquele dia em diante, nunca mais senti  dor. Dormências, sim. Esquecimentos... 
 Por anos a fio, vivi entre novelos de lã, tricotando, lendo revistas e vendo a vida passar  através  da janela.
Agora, cansada, todos os dias me sento,  à espera de quem, decerto, não me  faltará, e virá, algum dia.
belvedere
Enviado por belvedere em 20/07/2007


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