Uns minutos com Belvedere

Tenho sido feliz procurando crescer dentro do que me propus.

Textos


RÉQUIEM PARA OLÍVIA


Belvedere

Olívia tivera uma existência sacrificada. Cinco filhos, todos machos, e separada de seu marido, muito cedo. Fazia das tripas coração, para que nada faltasse aos mesmos.


Costurava, tinha uma espécie de pensão em sua própria casa e ainda tinha tempo para servir de dama de companhia a uma senhora da sociedade que havia sido abandonada pelos filhos. Levava-a para passeios em locais aprazíveis, assistiam juntas às missas dominicais, enfim, dava aconchego àquela alma solitária. Sem cobrar nada!


O exemplo de Olívia repercutiu demais em meu espírito. Ela tornou-se uma pessoa incensada nos meus comentários, um exemplo de ser humano.


Há algum tempo fui visitá-la após um longo período, pois residindo, ela, em Natal, minhas visitas sempre foram escassas, ainda que plenas de amor e carinho.


Preocupou-me ver seu estado. Primeiro, porque não me reconhecia. Simplesmente perdera parte da memória. Depois, ao olhar a casa em que estava vivendo. Móveis estragados, sofás rasgados, geladeira vazia... Fiquei perplexa! Ela, envergonhada, tentava ocultar a situação... Senti dor no peito!


Fingia me reconhecer, mas o mutismo traduzia a realidade. Eu não era mais ninguém no seu universo. Que saudades senti daquela Olívia contadora de causos, sempre gargalhando...


Tirei algumas fotografias com ela, abraçando-a apertado, pois ali me despedia, com certeza. Não pude ocultar as lágrimas que caíam de meus olhos rememorando os tempos felizes, as férias que passava com ela, a sua alegria...


Perdera Olívia, e ela estava ao meu lado, viva! Que sensação estranha...


Eu, então, relembrava: ela correndo atrás de baratas e me chamando de medrosa... ou indo às compras com o braço quebrado na tipóia... Nada restara daquela Olívia, agora sentada ao meu lado, ouvindo, em estranha quietude.


Ofereceu-me um refresco, porém recusei para não ocupá-la. Disse-lhe que nada me importava, a não ser ela. E sua amiga Martinha, presente em sua vida por várias décadas, olhava-me, quieta. Eu, então, comentei: "Tudo que ela sente é falta de amor!" E Martinha concordou.


Encontrei-me com os filhos de Olívia em um evento. Falei sobre a perda de memória, indaguei a razão de não ter um médico a acompanhando. Sabia que ela já havia caído inconsciente na rua três vezes, sem que procurassem meios de detectar a causa. Nenhum médico havia sido solicitado para investigar os desmaios. Para eles, a falta de memória era decorrente da idade, e só. Os desmaios, sequer comentaram.


Eles viviam bem, em bairros classe média alta. Qual a razão de tão más condições de vida para aquela mãe que tanto se doara a eles? Por que a abandonaram daquela forma? E ela ainda dizia que eram os melhores filhos do mundo! Coisas de mãe mesmo!


Eu disse a eles: "Se pudesse ficar aqui mais um tempo, a levaria a um geriatra para melhorar seu estado. Daria atenção, carinho, passearia com ela pela orla..." — Lembrei-me do que ela fazia com a senhora abandonada pelos filhos. A situação se repetia.


Eles responderam como em um coral:

— Mas ela tem noventa anos e já vai morrer!


Voltei sem nada dizer aqueles filhos, sabendo que qualquer idéia seria, para mim, desperdício de tempo e destroçar de coração.


Hoje, acredito que a perda da memória de Olívia tenha sido misericórdia divina. Ela, apesar de tudo, é uma pessoa feliz... E tem filhos maravilhosos!

belvedere
Enviado por belvedere em 18/09/2005


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