Uns minutos com Belvedere

Tenho sido feliz procurando crescer dentro do que me propus.

Textos




O REVERSO
 
Belvedere Bruno


Adamantina aparecia em noites de lua cheia. Bela e risonha, deixando um rasto de perfume. Naquela fazenda, muitos já haviam morrido, mas Adamantina conseguira se impor como uma espécie de lenda.
Sentado sobre um banco, Anastácio rememora sua existência:- Eta vida danada! Já estou cansado, está mais que na hora de ir embora! Não sei o que ainda faço nesse mundo. Por que não morri naquele vendaval?
Há quarenta anos, ocorrera o que transformou sua vida nesse marasmo, um constante arrastar de correntes...
Era inconformado de nascença. Sua voz esganiçada não permitia que travasse contato com mulheres e, encarcerado em seu mundo, só despertou aos vinte e sete anos, quando encontrou Adamantina, que o procurou numa linda noite de lua cheia e disse:- Vamos te curar dessa voz horrível. Preciso apenas de galhos de arruda, te banhar com ervas. Todas as noites, virei a seu quarto para colocar uma imagem de barro sob sua cama. E assim, após algum tempo, ele desentalou a voz, que tomou um tom másculo, fazendo-o enxergar o mundo com todas as suas cores.
Ela era famosa e temida como feiticeira, porém invejada pelas mulheres tanto quanto cobiçada pelos homens. Beleza morena, corpo curvilíneo. Tinha na época vinte e cinco anos.
Ao saber do casamento de Anastácio, coisa resolvida em duas semanas, Adamantina disse-lhe : - Volte a usar a imagem de barro sob sua cama quinze dias antes do casamento. Novamente, irei ao seu quarto todas as noites.
Assim foi feito. Em uma dessas noites de lua cheia, ela resplandecia, e seu perfume tomava conta do ambiente. Excitados, abraçaram-se e beijaram-se com sofreguidão, entregando-se ao desejo que os consumia. Ao longe, durante toda aquela noite,  podia-se ouvir um ruído, uma espécie de uivo.
No dia seguinte, ela agiu como se nada houvesse acontecido. E os dias passaram...
Era noite de lua cheia quando um vendaval assolou a fazenda, derrubando tudo, nada restando nas casas, a não ser os móveis mais pesados. A imagem de barro que estava sob a cama de Anastácio espatifou-se. Ele correu, em meio à enxurrada de objetos espalhados pela fazenda, e encontrou Adamantina em sua casa, sob os escombros de seu "quartinho de santo". Com ela, intacta, estava uma réplica da imagem que havia sido quebrada. Adamantina estava morta.
Ele passou a usar a nova imagem de barro sob sua cama e, conforme os dias foram passando, observou uma mudança gradativa em sua voz, que atribuiu ao nervosismo, devido ao casório.
No dia das bodas, diante do padre, a voz saiu esganiçada, como nos tempos passados. Ele estremeceu. Apavorado, olhos arregalados, corria e gritava pelas ruas, com seu fiapo de voz: - Maldição! Maldição!
Tempos depois, começaram  falatórios sobre  aparições de Adamantina em noites de lua cheia. Por anos a fio, Anastácio esperou encontrá-la , e já não nutria  esperança quando, numa dessas noites, sentado sozinho, rememorando sua vida, eis que vê Adamantina ao seu lado e, sobressaltado, ainda mal consegue lhe  perguntar por que fizera aquilo com ele. Desgraçara sua vida!
Ela balança a cabeça, fixa-o firmemente e diz: - Nunca fui feiticeira, o máximo que fazia era rezar pra afastar mau-olhado. O resto era coisa corriqueira, sem mistérios. Todos me viam de forma equivocada. Nunca tive poderes. Você sim. De forma semiconsciente. Desde criança, se acobertara numa voz estranha para se afastar das pessoas e não ser descoberto. Quando tivemos um relacionamento envolvendo sexo, apelou às forças, através do vendaval, para que eu morresse. Fui a única a morrer. No dia do casamento, perdeu a voz para não se comprometer com ninguém nessa vida. Tinha que viver sozinho, pois seu segredo não poderia ser descoberto. E o uivo começou a ser ouvido...
Adamantina diz: - Ouça esse som. Já começou a uivar. Observe como seu uivo chega nos momentos mais marcantes. Você agora uivará até que toda sua energia vital se esvaia. Estou indo embora.  E sai, deixando o seu perfume característico. Anastácio continua uivando, agora com plena consciência de que seu grande enigma estava exposto.
Pessoas impressionadas com o incessante som começaram a sair, procurando de onde ele  vinha. Chegaram  a Anastácio que, com olhos arregalados, fixos na lua cheia, uivou, até que o som cessou e uma nuvem negra o encobriu, para espanto de todos, que se persignaram.

 

 

 

belvedere
Enviado por belvedere em 11/09/2005
Alterado em 23/07/2007


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